sábado, 24 de agosto de 2013

sol lucet omnibus



 
   Desde pequeno que me habituei a que os incêndios florestais durante o Verão fossem uma companhia constante nos meios de comunicação social.

   Mas curiosamente ou talvez não, ao invés de com o passar dos anos, o aumento dos meios e dos conhecimentos, essa realidade ter tendência a ser atenuada, não o é. Bem pelo contrário, ano após ano a mesma farsa teatral, o mesmo uso inconsequente de meios e vidas tomam os seus papeis na perfeição para mais uma encenação, um pouco à laia daqueles filmes da industria de Hollywood que todos os anos, na época balnear, chegam ás salas de cinema para que os possamos ver, rir e não pensar em mais nada durante uma boa hora e meia de tempo perdido mas divertido...

   Mas os incêndios nas florestas portuguesas não me dão vontade de rir, a morte de pessoas a combate-los muito menos, antes pelo contrário.

   Como se não bastasse ver desaparecer, ano atrás de ano a nossa mancha florestal, que levará séculos a ser reposta, pois uma árvore não cresce de um dia para o outro, assistimos ao nosso jornalismo de eleição que com bastas provas dadas, continua a impingir a ideia de que o sol por obra e graça do espírito santo, com os seus longos raios toca ao de leve as árvores e as lança numa espiral de chamas demoniacas. Ou então, a segunda versão também é um clássico do chavão jornalistico, um bêbado, bandido, trôpego nos seus passos lançou uma beata ainda fumegante para um, cuidadosamente preparado, ajuntamento de caruma que instantaneamente entrou em combustão selvagem e em menos de uma hora temos um incêndio de 3 frentes a destruir uma serra inteira de área arborizada...

   Não, a industria da madeira, do papel, os interesses políticos e de grandes empresas em adquirir ou alterar zonas em áreas protegidas nada têm a ver com a vergonha nacional que são os incêndios florestais que se repetem todos os anos. Rigorosamente nada a ver! Falar nisso são devaneios de gente desocupada que com a sua mente pérfida cria a torto e a direito teorias da conspiração que não têm ponta por onde se lhe pegue... Só temos o grande azar de ter muito sol e muitos bêbados a deambular pelas nossas florestas.

   Para finalizar uma palavra de apreço para as instituições que têm cuidado das nossas áreas florestais pelos muitos anos de péssimas opções de (re)florestação com a introdução constante de tipos de árvores que pouco têm a ver com a nossa realidade mediterrânica e com as nossas específicidades atlântica em detrimento das nossas espécies autoctones que de á séculos cobrem de verde o nosso país. Obviamente que isto nada tem a ver com interesses instalados ou pura ignorância dos nossos excelsos governantes que nem a diferença entre um carvalho (Quercus faginea) e um pinheiro (Pinus pinaster) sabem...

domingo, 2 de junho de 2013

SPQL senatus populusque lusitania


Tapeçarias ditas de Pastrana - Pormenor D. Afonso V

   39 anos!
   Passaram 39 anos. Daqui por uns tempos estarão a comemorar tantos anos de vitoriosa democracia como aqueles que se passaram em cinzenta ditadura. Estarão, aquando dessa efeméride, no mesmo tom inflamado a gritar nas mesmas ruas em baixa definição, pessoas já elas cinzentas, 25 de Abril Sempre, Fascismo Nunca Mais...
Para os do costume, estarão de foicinha e punho, chavão fácil na boca, a atirar se por acaso estaríamos melhor na tristonha ditadura desses idos de Portugal a preto e branco?!
E eu não percebo!
 
   A democracia já viveu o suficiente para ser responsabilizada pelos seus actos. A ditadura já o foi, agora deve ser objecto de estudo, sério, para na paleta não ser nem branca, a contento de uns, nem preta, a vontade de outros, mas sim tecida naqueles tons de cinzento, nítidos para que quem a olhe a possa ler em alta definição e não apenas nas convenientes nuances que têm feito o deleite e a cartilha da esquerda nacional.
 
   A ditadura será sempre somente fascista e opressora na pena afiada dos vencedores de Abril, tal como o papão será sempre o Dr. Salazar, o "botas", que vem trôpego e muito velhinho naquele tom bafiento enviar as pessoas para Caxias... buuuuhhhhh. Afinal quem entretece a história, quem a escreve no imediato, quem a lança na linha da frente da propaganda, são os vencedores.
 
   D. Sebastião será, provavelmente para sempre, aquilo que os cronistas e apoiantes de Filipe II de Espanha quiseram que ele fosse... morto, vivo, com vergonha de regressar, maricas, aleijadinho ou com deficiências e incapaz de governar, louco...
 
   António de Oliveira Salazar também. Não foi de certo o anjo salvador e redentor, mas não terá sido o demónio sanguinário dos Rosas e pandilha...
 
   D. Carlos foi o gordo, que se ria da miséria do povo, déspota ao estilo do antigo regime, que só sabia comer e caçar, um asno ignorante, um fraco que apenas governou porque a monarquia impunha a hereditariedade... D. Carlos só foi pintado assim pela propaganda vencedora do partido republicano... por mais ninguém...
Passados mais de 100 anos da sua morte se calhar já o conseguimos, hoje, "pintar" nuns tons de verdade. Até já teve a graça de ser presenteado nessa Vila que ele adorava e onde era adorado com uma estátua, a olhar o mar...

   Mas falta cumprir Abril...
   Lamentavelmente não consigo concordar.
   Abril cumpriu-se, consumou-se em pleno para quem o fez, para quem dele reclamou o triunfo, aclamado e transportado em ovação. Mas porque a generalização normalmente conduz ao erro, talvez não se tenha cumprido para todos os que o fizeram ou a ele se colaram, mas cumpriu-se para os generais (capitães na época) de Abril, para os Soares, Almeidas, Sampaios, Cavacos, Santanas, Socrates, Barrosos e tantos outros patetas alegres que de nulidades assumidas passaram a pais fundadores de uma nação inventada que não se cumpre nem se constrói.
 
   Algo mudou, claro que sim. Coisas que hoje damos por adquiridas e não o eram á 50 anos. Mas se até o Estado Novo legou algumas coisas boas á posteridade, quase quatro decénios de liberdade e democracia também teriam de legar.
 
   Foram quase 39 anos de apatia política, de falta de responsabilidade social, de ignorância democrática que conduziram ao que hoje conhecemos, vivemos e criticamos... mas a democracia não se constrói na rua, não se aprende atrelado aos sindicatos nem ás máquinas partidárias, nem com comentadores que foram governo, que foram presidentes de câmara, que foram filósofos, que voltaram a ser governo para de novo serem comentadores e que nos conduziram a todos a onde estamos agora. Transversalmente da direita á esquerda o sistema está demente, podre, bafiento e nem foi preciso cair da cadeira... aliás não caiu!
 
   A mesma corja de políticos incompetentes, gananciosos, ávidos da coisa pública para proveito próprio que se apoderou do poder com a revolução liberal nos anos 30 do século XIX, é a mesma que governa hoje o país. Foi a mesma que prevaleceu em 1910, é a mesma que fugiu ou colaborou em 1932, é a mesma que ascende de 1974.
 
   Algo de muito mau se verifica quando quase duzentos anos depois se conseguem apontar as mesmas falhas á classe política de um país... Algo de inqualificável existe quando a única diferença entre ler sobre ela em Eça, Ramalho ou no Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins e a realidade dos nossos dias, é a sua data de publicação...
 
   A memória curta, a par de alguns (muitos) outros defeitos, é um dos nossos mais graves problema com fundas raízes sociais. Chamo-lhe memória curta para não chamar ignorância consciente.
Pior, a rápida condenação dos figurões políticos na praça pública é sempre seguida de uma ainda mais rápida absolvição. Imaturidade infantil.
 
   Aqueles que dizem que nos governam, governam-se a eles próprios não a nós. Por certo desconhecem que a res publica, era na sua origem e fundamento a "Coisa Pública". Aqueles que nela governam, são mandatados por todos para a gerir em prol de todos, não de si mesmos. Mas tão grave é quem lá está não o fazer, como quem lá os colocou não os saber lembrar disso.
 
   Não atravessamos apenas crises económicas, atravessamos essencialmente crises de valores, crises de Ser. Invertemos tudo. Quem deveria servir, mandatado para isso, ao invés serve-se e banqueteia-se no cadáver moribundo.
 
   E isto é o pior que uma democracia pode ter, uma sociedade incapaz de fazer escolhas conscientes e sustentadas! Uma sociedade incapaz de fazer escolhas. Só isso explica este rotativismo ignorante que implantámos na nossa peculiar agenda democrática depois de 1974. Começamos agora, tristes quase cinzentos na era digital, a querer despontar, a querer perceber... a querer pensar! Será???
 
   Só poderei optar conscientemente, só poderei minorar o erro na escolha se conseguir diminuir a margem de manobra do dito erro. Isso consegue-se com conhecimento. Quando tenho duas opções, mais possibilidades tenho de fazer uma boa escolha quanto mais conhecimento tiver reunido sobre as opções que estão a escolha!
 
   As opções de escolha que garbosamente nos fazem encher a boca republicana e democrática são falácias. Gritamos a plenos pulmões que não queremos uma monarquia moderna, constitucional, democrática, em Portugal porque a hereditariedade que lhe está subjacente é uma afronta á nossa liberdade de escolha, á nossa sacrossanta liberdade de escolher o nosso chefe de estado...
MENTIRA! A nossa liberdade de escolha eleitoral democrática não existe pois se a monarquia se verga ao peso basilar da hereditariedade, a democracia republicana verga-se ao número da maioria, ás máquinas dos partidos e dos grandes interesses  e grupos económicos que os sustentam... Onde está a liberdade de escolha então? na letra da lei, na letra dos manuais pelos quais todos emprenhamos de promessas vazias, ocas e desmedidas, pelas quais hoje somos obrigados a dar tudo o que já não temos...
 
   Um país que se ignora nunca saberá viver em nada, seja Republica ou Monarquia, democracia ou ditadura. Se uns culpam o Estado Novo por ter desprezado a cultura e alfabetismo popular em detrimento de uma agenda de propaganda no enaltecimento desmesurado de períodos e personagens históricas, que condicionou de sobremaneira a historiografia nacional por largas décadas; outros não desculpam a agenda de massificação cultural e de desinteresse histórico que se verificou por largos anos no pós 25 de Abril. Se num primeiro momento encontramos a criação de mitos (muitos ainda hoje vão perdurando) e o endeusamento em cartilha da nossa história, no segundo momento encontramos o total desrespeito e indiferença pela história, tradições e cultura de um país com quase mil anos de existência...
 
   De "pecado" em "pecado" ardamos pois no "inferno"...
 
   Se evoluirmos enquanto sociedade não teremos dificuldade em singrar qualquer que seja o regime que conscientemente se escolha. Não será de hoje para amanhã que essa mudança vai acontecer, levará tempo, mas para que se cumpra é preciso começar e para a começar é preciso largar de vez estes falsos lugares de conforto que todos, de um modo ou outro vamos ocupando e partir. Assumir o leme nesta nau que é Portugal e encetar a rota que nos leve ao encontro de nós mesmos, enquanto povo, nação, país, inseridos no mundo que nos rodeia mas conscientes de quem somos e das escolhas e caminhos que queremos perfilhar. Sabendo que poderemos ter que fazer sacrifícios, mas que esses são em nossa prol e não para que outros possam lucrar, sabendo que poderemos ter pouco ou nada mas que isso irá conduzir a algo melhor e não apenas a podermos contrair mais dívidas em mercados exteriores daqui por um ou dois anos. Sabendo quem somos, poderemos valorizar e usar o que temos.

sábado, 9 de março de 2013

cruce signati

Regras e Definições da Ordem e do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Valentim Fernandes, 1504
 

   Todos conhecemos ou pelo menos já ouvimos falar da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, comummente designados por Templários. Esta ordem de monges guerreiros, criada no século XII (1118) por um grupo de 8 cavaleiros está inserida no espírito de Cruzada e recuperação dos lugares santos que, desde a proclamação do papa Urbano II em Clermont-Ferrand em 1095, animava a Europa medieval.

   Apesar da pouco importância dada pela historiografia internacional ao movimento cruzadistico que ocorreu em paralelo na Peninsula Ibérica, ele é inegável e tem tanta importância como aquele que ocorria a Oriente. A provar isso mesmo encontramos registo da implantação destas ordens militares por toda a Peninsula logo após a sua criação. A ilustrá-lo temos a presença Templária documentada desde 1126/28 em território do Condado.

   A Ordem, prosperou, cresceu, enriqueceu e acabou por atrair sobre si demasiadas atenções que acabaram por lhe proporcionar a queda e extinção por toda a Europa. Em abono da verdade, descobertas recentes, nomeadamente um estudo dos manuscritos originais do processo, acabaram por comprovar o que há muito se pensava, que a extinção dos Templários teve a ver unicamente com questões de poder, financiamento e política e não com as heresias de que foram acusados. Como curiosidade, a prisão colectiva de todos os Templários franceses, incluindo o seu grão-mestre, Jacques de Molay, foi um acontecimento de tal magnitude, na época, que ainda hoje, o inconsciente colectivo, o relembra a cada Sexta-feira 13. O facto deste dia ser considerado maldito e de azar tem a ver com isso mesmo, o dia 13 de Outubro de 1307, uma Sexta-feira.

   Mas antes que me perca, pois o assunto, e a minha eterna paixão por ele, presta-se a isso mesmo, continuo esta pequena introdução que servirá para partilhar mais uma curiosidade da história pátria.

   Após a extinção da Ordem do Templo (1314), que acabou por ser alargada a todos os reinos cristãos da Europa, apesar de na maioria deles terem sido considerados inocentes de todas as acusações (como em Portugal), o papa deu indicação para que os seus incontáveis bens e património passasse para a Ordem de S. João do Hospital, também conhecidos por Hospitalários ou a partir da época moderna (século XVI) por Ordem de Malta.

   Em Portugal, reinando D.Dinis, após a extinção da Ordem, o rei criou a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo (em 1319 pela Bula Papal ad ea ex-quibus) de modo a que esta herdasse tudo o que aos Templários pertencia, incluindo os monges-cavaleiros...

   Apesar de pouco veiculada pela historiografia nacional restam hoje poucas dúvidas de que a Expansão Portuguesa foi em grande parte obra apenas possível graças aos conhecimentos, vontade e recursos da Ordem de Cristo. Sem entrar em muitos detalhes mas para que se perceba, D. João I foi educado por D. Nuno Freire de Andrade, mestre da Ordem, o infante D. Henrique foi empossado como Administrador e Governador pelo Papa em 1420; a maioria dos descobridores eram cavaleiros e/ou escudeiros da Ordem de Cristo, Gonçalves Zarco, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, Pedro Álvares Cabral ou D. João de Castro, só para citar alguns dos mais conhecidos; e coincidentemente ou não, a reforma da Ordem, ordenada por D. João III e executada por Frei António de Lisboa, que a torna puramente religiosa, lhe altera a regra monástica e lhe impõe a clausura, coincide com o início do declinio do Império e do projecto Imperial Português.

   Depois desta introdução alargada para dotar o estimado leitor de algumas ferramentas históricas que sirvam de referência, atrevo-me a dizer que toda a gente de um modo ou outro conhece a simbólica e a imagética associada à Ordem de Cristo, nomeadamente a sua Cruz. Quer por recriações e descrições das caravelas e dos cavaleiros de Cristo, quer devido aos monumentos, principalmente os erigidos durante o reinado de D. Manuel I, através da Chancelaria das Ordens Honorificas da responsabilidade da Presidência da Republica, quer através de clubes de futebol (Os Belenenses) ou associações (Federação Portuguesa de Futebol).

   A cruz de cristo, baseada na cruz pátea templária, é originalmente uma cruz grega (isto é de braços iguais), pátea, de vermelho, carregada de nova cruz grega de branco (que terá como significado o renascer, sem mácula ou culpa da Ordem do Templo. Poderão haver outras interpretações simbólicas).

   Pois bem, posto isto, questionei-me o porquê de por vezes a cruz da Ordem de Cristo aparecer de alguma forma transmutada, nomeadamente, em cruz latina, ou seja, com o braço (ou haste) inferior a ter um comprimento desigual relativamente aos outros três.

   A resposta é simples, curiosa e não sem ironia mordaz...

   Como atrás referi, desde o infante D. Henrique que a ordem de Cristo está ligada directa ou indirectamente à Casa Real Portuguesa. D. Henrique era filho de D. João I, deste passou para o infante D. Fernando (filho do Rei D. Duarte), irmão de D. Afonso V, posteriormente, embora ainda não assumido totalmente pela historiografia, poderá ter passado para a infanta Dª Beatriz, mulher do anterior e depois para o seu filho mais novo e futuro rei de Portugal, D. Manuel. Este, era Administrador e Governador da Ordem quando, por testamento de D. João II, se tornou Rei de Portugal. Durante o seu reindo acabou por conseguir do Papa, através da Bula constant fide,e o titulo de Grão-Mestre e contou com esta elite, que já trazia meio século de experiência acumulada nas questões marítimas, de cruzada e descoberta do mundo, para implementar o seu projecto imperial nos “quatro cantos” do globo. Mas será já durante o reinado de D. João III que o título passará em definitivo e in perpetuum para a Coroa portuguesa. A Bula praeclara clarissimi, de 1551, torna os governo das Ordens, incluindo a de Cristo, hereditário e apanágio da Coroa. Embora, nesta altura, já pouco mais fossem que ordens religiosas e títulos ocos e honoríficos.

   Com a perda da indepência, após o deasaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir, Filipe, II de Espanha, aclamado, curiosamente nas cortes de Tomar em 1581, Rei de Portugal, herda também a Ordem de Cristo. Durante o seu reinado e o de seu filho vai proceder a reformas na Ordem e será nestas reformas que irá transformar a cruz grega de braços iguais na cruz latina que anteriormente referi, fazendo gala, obviamente, em marcar com essa simbologia toda a obra nova, que daí em diante se fizesse, para além da legitimação e do aspecto de pertença, também por toda a carga histórica e simbólica que a Ordem encerrava. Assim, nas fachadas dos edificios, pertença da dita Ordem, que pelo novo monarca foram renovados e/ou construídos, nos documentos e mesmo em peças de ourivesaria o novo formato da cruz é implantado amplamente.

   Eu diria que este comportamento é usual, quem chega de novo e se apropria de algo, quer, de um modo ou de outro deixar o seu cunho, a sua marca, testemunho da sua presença para a posteridade. O que são o dito estilo “manuelino”, e todas as campanhas de obras e restauros mandados fazer por D. Manuel, senão uma forma de afirmação de alguém que chega ao trono por nomeação testamentária e não por hereditariedade (obviamente que o estilo “manuelino” não se resume a isso, mas é-o também).
 
  Agora o curioso da questão é o que se passa a posteriori. E para o ilustrar vou apenas fazer referência a dois casos. A Federação Portuguesa de Futebol e, para mim a mais grave, a própria Chancelaria das Ordens Honoríficas da República Portuguesa a cargo de sua excelêcia o senhor Presidente da República. Estas duas instituições usam a cruz da Ordem de Cristo que se institucionalizou após as reformas de Filipe II e III de Espanha. Não existe aqui uma verdadeira culpa, pois, na verdade ninguém no reino, após a Restauração de 1640, até pela completa perda de importância em que havia caído a Ordem, se importou em devolver-lhe a sua simbologia original e convenhamos, portuguesa.

   Mas acho curioso que não se tenha o cuidado de procurar saber, principalmente quando se trata de instituições que representam o país ao mais alto nível, que tipo de simbologia se está a usar e porquê. Pois no nosso passado estão as nossas raízes, o nosso ser, e é irónico que a nossa Selecção Nacional de Futebol jogue com um emblema ao peito que foi institucionalizado por um rei espanhol, por uma “dinastia” estrangeira que governou o país durante 50 anos apenas, um emblema que na verdade só em nome se pode associar á ordem em questão; ou que o Chefe de Estado distribua condecorações que têm a sua simbologia ligada a um Rei estrangeiro (não é que isso tenha muita importância quando o mesmo senhor não está atento ao içar a bandeira nacional, deixando que seja colocada invertida).

Actuais Condecorações da Ordem de Cristo. Chancelaria das Ordens Honorificas da Presidência da Republica

   O nosso desconhecimento e consequente falta de respeito pela nossa própria herança histórico-cultural, traduz-se inclusivamente no desconhecimento e constante incorrecção de que somos alvo por parte do olhar académico estrangeiro. Isso entristece, porque a todo o momento se vê enaltecer os feitos dos outros por todo lado, mas dos nossos feitos e heróis ninguém se parece lembrar. A razão dessa atitude começa cá dentro...

   Não é, de todo, a legitimidade de D. Filipe, ou de seu filho e neto que está em causa, o caminho poderia ter sido outro, mas não foi. O que se discute aqui é o simples facto do símbolo em si. Se a ideia é que faça algum sentido que tenha algum significado, porque as pessoas rapidamente o reconhecem e com ele se identificam e assim o parece, por isso é e foi escolhido, então deveriamos estar perante aquele que orna os monumentos nacionais ainda hoje, aquele que um dia se enfunou com o vento favorável nas velas de um punhado de pequenas embarcações de madeira que cruzaram oceanos ou, aquele mesmo que estava inserido nas vestes dos cavaleiros e escudeiros desta Ordem que durante mais de dois séculos e meio estiveram ao serviço do país.

   É com esse que eu me identifico.