sábado, 9 de março de 2013

cruce signati

Regras e Definições da Ordem e do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Valentim Fernandes, 1504
 

   Todos conhecemos ou pelo menos já ouvimos falar da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, comummente designados por Templários. Esta ordem de monges guerreiros, criada no século XII (1118) por um grupo de 8 cavaleiros está inserida no espírito de Cruzada e recuperação dos lugares santos que, desde a proclamação do papa Urbano II em Clermont-Ferrand em 1095, animava a Europa medieval.

   Apesar da pouco importância dada pela historiografia internacional ao movimento cruzadistico que ocorreu em paralelo na Peninsula Ibérica, ele é inegável e tem tanta importância como aquele que ocorria a Oriente. A provar isso mesmo encontramos registo da implantação destas ordens militares por toda a Peninsula logo após a sua criação. A ilustrá-lo temos a presença Templária documentada desde 1126/28 em território do Condado.

   A Ordem, prosperou, cresceu, enriqueceu e acabou por atrair sobre si demasiadas atenções que acabaram por lhe proporcionar a queda e extinção por toda a Europa. Em abono da verdade, descobertas recentes, nomeadamente um estudo dos manuscritos originais do processo, acabaram por comprovar o que há muito se pensava, que a extinção dos Templários teve a ver unicamente com questões de poder, financiamento e política e não com as heresias de que foram acusados. Como curiosidade, a prisão colectiva de todos os Templários franceses, incluindo o seu grão-mestre, Jacques de Molay, foi um acontecimento de tal magnitude, na época, que ainda hoje, o inconsciente colectivo, o relembra a cada Sexta-feira 13. O facto deste dia ser considerado maldito e de azar tem a ver com isso mesmo, o dia 13 de Outubro de 1307, uma Sexta-feira.

   Mas antes que me perca, pois o assunto, e a minha eterna paixão por ele, presta-se a isso mesmo, continuo esta pequena introdução que servirá para partilhar mais uma curiosidade da história pátria.

   Após a extinção da Ordem do Templo (1314), que acabou por ser alargada a todos os reinos cristãos da Europa, apesar de na maioria deles terem sido considerados inocentes de todas as acusações (como em Portugal), o papa deu indicação para que os seus incontáveis bens e património passasse para a Ordem de S. João do Hospital, também conhecidos por Hospitalários ou a partir da época moderna (século XVI) por Ordem de Malta.

   Em Portugal, reinando D.Dinis, após a extinção da Ordem, o rei criou a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo (em 1319 pela Bula Papal ad ea ex-quibus) de modo a que esta herdasse tudo o que aos Templários pertencia, incluindo os monges-cavaleiros...

   Apesar de pouco veiculada pela historiografia nacional restam hoje poucas dúvidas de que a Expansão Portuguesa foi em grande parte obra apenas possível graças aos conhecimentos, vontade e recursos da Ordem de Cristo. Sem entrar em muitos detalhes mas para que se perceba, D. João I foi educado por D. Nuno Freire de Andrade, mestre da Ordem, o infante D. Henrique foi empossado como Administrador e Governador pelo Papa em 1420; a maioria dos descobridores eram cavaleiros e/ou escudeiros da Ordem de Cristo, Gonçalves Zarco, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, Pedro Álvares Cabral ou D. João de Castro, só para citar alguns dos mais conhecidos; e coincidentemente ou não, a reforma da Ordem, ordenada por D. João III e executada por Frei António de Lisboa, que a torna puramente religiosa, lhe altera a regra monástica e lhe impõe a clausura, coincide com o início do declinio do Império e do projecto Imperial Português.

   Depois desta introdução alargada para dotar o estimado leitor de algumas ferramentas históricas que sirvam de referência, atrevo-me a dizer que toda a gente de um modo ou outro conhece a simbólica e a imagética associada à Ordem de Cristo, nomeadamente a sua Cruz. Quer por recriações e descrições das caravelas e dos cavaleiros de Cristo, quer devido aos monumentos, principalmente os erigidos durante o reinado de D. Manuel I, através da Chancelaria das Ordens Honorificas da responsabilidade da Presidência da Republica, quer através de clubes de futebol (Os Belenenses) ou associações (Federação Portuguesa de Futebol).

   A cruz de cristo, baseada na cruz pátea templária, é originalmente uma cruz grega (isto é de braços iguais), pátea, de vermelho, carregada de nova cruz grega de branco (que terá como significado o renascer, sem mácula ou culpa da Ordem do Templo. Poderão haver outras interpretações simbólicas).

   Pois bem, posto isto, questionei-me o porquê de por vezes a cruz da Ordem de Cristo aparecer de alguma forma transmutada, nomeadamente, em cruz latina, ou seja, com o braço (ou haste) inferior a ter um comprimento desigual relativamente aos outros três.

   A resposta é simples, curiosa e não sem ironia mordaz...

   Como atrás referi, desde o infante D. Henrique que a ordem de Cristo está ligada directa ou indirectamente à Casa Real Portuguesa. D. Henrique era filho de D. João I, deste passou para o infante D. Fernando (filho do Rei D. Duarte), irmão de D. Afonso V, posteriormente, embora ainda não assumido totalmente pela historiografia, poderá ter passado para a infanta Dª Beatriz, mulher do anterior e depois para o seu filho mais novo e futuro rei de Portugal, D. Manuel. Este, era Administrador e Governador da Ordem quando, por testamento de D. João II, se tornou Rei de Portugal. Durante o seu reindo acabou por conseguir do Papa, através da Bula constant fide,e o titulo de Grão-Mestre e contou com esta elite, que já trazia meio século de experiência acumulada nas questões marítimas, de cruzada e descoberta do mundo, para implementar o seu projecto imperial nos “quatro cantos” do globo. Mas será já durante o reinado de D. João III que o título passará em definitivo e in perpetuum para a Coroa portuguesa. A Bula praeclara clarissimi, de 1551, torna os governo das Ordens, incluindo a de Cristo, hereditário e apanágio da Coroa. Embora, nesta altura, já pouco mais fossem que ordens religiosas e títulos ocos e honoríficos.

   Com a perda da indepência, após o deasaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir, Filipe, II de Espanha, aclamado, curiosamente nas cortes de Tomar em 1581, Rei de Portugal, herda também a Ordem de Cristo. Durante o seu reinado e o de seu filho vai proceder a reformas na Ordem e será nestas reformas que irá transformar a cruz grega de braços iguais na cruz latina que anteriormente referi, fazendo gala, obviamente, em marcar com essa simbologia toda a obra nova, que daí em diante se fizesse, para além da legitimação e do aspecto de pertença, também por toda a carga histórica e simbólica que a Ordem encerrava. Assim, nas fachadas dos edificios, pertença da dita Ordem, que pelo novo monarca foram renovados e/ou construídos, nos documentos e mesmo em peças de ourivesaria o novo formato da cruz é implantado amplamente.

   Eu diria que este comportamento é usual, quem chega de novo e se apropria de algo, quer, de um modo ou de outro deixar o seu cunho, a sua marca, testemunho da sua presença para a posteridade. O que são o dito estilo “manuelino”, e todas as campanhas de obras e restauros mandados fazer por D. Manuel, senão uma forma de afirmação de alguém que chega ao trono por nomeação testamentária e não por hereditariedade (obviamente que o estilo “manuelino” não se resume a isso, mas é-o também).
 
  Agora o curioso da questão é o que se passa a posteriori. E para o ilustrar vou apenas fazer referência a dois casos. A Federação Portuguesa de Futebol e, para mim a mais grave, a própria Chancelaria das Ordens Honoríficas da República Portuguesa a cargo de sua excelêcia o senhor Presidente da República. Estas duas instituições usam a cruz da Ordem de Cristo que se institucionalizou após as reformas de Filipe II e III de Espanha. Não existe aqui uma verdadeira culpa, pois, na verdade ninguém no reino, após a Restauração de 1640, até pela completa perda de importância em que havia caído a Ordem, se importou em devolver-lhe a sua simbologia original e convenhamos, portuguesa.

   Mas acho curioso que não se tenha o cuidado de procurar saber, principalmente quando se trata de instituições que representam o país ao mais alto nível, que tipo de simbologia se está a usar e porquê. Pois no nosso passado estão as nossas raízes, o nosso ser, e é irónico que a nossa Selecção Nacional de Futebol jogue com um emblema ao peito que foi institucionalizado por um rei espanhol, por uma “dinastia” estrangeira que governou o país durante 50 anos apenas, um emblema que na verdade só em nome se pode associar á ordem em questão; ou que o Chefe de Estado distribua condecorações que têm a sua simbologia ligada a um Rei estrangeiro (não é que isso tenha muita importância quando o mesmo senhor não está atento ao içar a bandeira nacional, deixando que seja colocada invertida).

Actuais Condecorações da Ordem de Cristo. Chancelaria das Ordens Honorificas da Presidência da Republica

   O nosso desconhecimento e consequente falta de respeito pela nossa própria herança histórico-cultural, traduz-se inclusivamente no desconhecimento e constante incorrecção de que somos alvo por parte do olhar académico estrangeiro. Isso entristece, porque a todo o momento se vê enaltecer os feitos dos outros por todo lado, mas dos nossos feitos e heróis ninguém se parece lembrar. A razão dessa atitude começa cá dentro...

   Não é, de todo, a legitimidade de D. Filipe, ou de seu filho e neto que está em causa, o caminho poderia ter sido outro, mas não foi. O que se discute aqui é o simples facto do símbolo em si. Se a ideia é que faça algum sentido que tenha algum significado, porque as pessoas rapidamente o reconhecem e com ele se identificam e assim o parece, por isso é e foi escolhido, então deveriamos estar perante aquele que orna os monumentos nacionais ainda hoje, aquele que um dia se enfunou com o vento favorável nas velas de um punhado de pequenas embarcações de madeira que cruzaram oceanos ou, aquele mesmo que estava inserido nas vestes dos cavaleiros e escudeiros desta Ordem que durante mais de dois séculos e meio estiveram ao serviço do país.

   É com esse que eu me identifico.

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